Não me interpretem mal. Eu
não ponho em dúvida a instituição divina do ministério cristão, posto que o
«ministério» é característico do cristianismo. E se bem creio que todos os
verdadeiros cristãos são ministros, eu não questiono um ministério especial e
distintivo da Palavra, como dado por Deus a alguns e não a todos, mas para o
uso de todos. Ninguém que seja verdadeiramente ensinado por Deus pode negar que
alguns cristãos tenham o lugar de evangelista, pastor ou mestre. A Escritura
ensina que todo verdadeiro ministro é um dom de Cristo, que o é por Seu cuidado
como Cabeça da Igreja, e que é para Seu povo, que é algum irmão que tem seu
lugar dado por Deus somente e que é responsável, em seu caráter de ministro,
ante Deus somente. O miserável sistema clérigo-laicista degrada o ministro de
Deus desse bendito lugar e faz dele pouco mais que a manufatura e o servidor
dos homens. À vez que outorga um lugar de senhorio sobre pessoas que comprazem
à mente carnal (a velha natureza), este sistema restringe ao homem espiritual,
tanto ao gerar nele uma consciência artificial para os homens (o conselho da
igreja, etc.), como ao obstaculizar sua consciência para estar corretamente
diante de Deus.
Permita-me estabelecer
brevemente qual é a doutrina da Escritura sobre o «ministério». É muito
simples. A verdadeira Igreja (Assembléia) de Deus é o corpo de Cristo; todos os
membros são os membros de Cristo. Nas Escrituras não há mais condição de
membros que esta: a de membros do corpo de Cristo, ao qual pertencem todos os
verdadeiros cristãos; não muitos corpos de Cristo, senão um só corpo (Efésios
4:4); não muitas igrejas, senão uma só Igreja.
Há um lugar diferente para
cada membro do corpo pelo único fato de que ele ou ela são um membro. Nem todos
podem ser o olho, ou ouvido, etc., mas todos eles são necessários, e todos são
ministros em alguma forma, uns dos outros. Assim pois, cada membro tem seu
lugar, não só em uma determinada localidade e para o benefício de uns poucos,
senão para o benefício do corpo inteiro.
Cada membro tem um dom
“porque da maneira que em um corpo temos muitos membros, mas nem todos os
membros tem a mesma função, assim nós, sendo muitos, somos um corpo em Cristo,
e todos membros uns dos outros. De maneira que, tendo diferentes dons, segundo
a graça que nos é dada...” (Romanos 12:4-6). Leia também 1.ª Coríntios 12:7.11;
Efésios 4:7 e 1.ª Pedro 4:10, os que também demonstram que cada cristão possui
um dom.
Em 1 Coríntios 12, Paulo
fala em detalhe destes dons e os chama por um nome significativo no versículo
7: “manifestações do Espírito”. Eles são dons do Espírito e, também,
manifestações do Espírito. Eles se manifestam (se mostram) a si mesmos ali onde
se encontram, onde há discernimento espiritual por gente que está mui próximo
de Deus, em comunhão íntima com ele. Por exemplo, tomemos o Evangelho. De onde
obtém seu poder e autoridade? É de alguma aprovação do homem, ou é de seu
próprio poder inerente? Desafortunadamente, a tentativa comum de acreditar ao
mensageiro, tira, em lugar de agregar, poder à Palavra. A Palavra de Deus deve
ser recebida simplesmente por ser sua Palavra. Ela tem a capacidade de
satisfazer as necessidades do coração e da consciência só por ser as boas novas
de Deus; o Deus que conhece perfeitamente qual é a necessidade do homem e que,
em conseqüência, tem feito provisão para ele. Todo aquele que tem sentido o
poder do Evangelho sabe de Quem tem vindo o poder. A obra e o testemunho do
Espírito Santo na alma não necessitam nenhum testemunho do homem que os
suplementem.
Mesmo a apelação do Senhor
em seu próprio caso foi à verdade. Ele expressou: “Pois se digo a verdade, por
que vós não me credes?” (João 8:46). Quando Ele falava na sinagoga judaica ou
em qualquer outro lugar, era, aos olhos dos homens, só um pobre filho de
carpinteiro, não acreditado por escola ou grupo de homens alguns. Todo o peso
da autoridade humana esteve contra Ele. Ele inclusive repudiou “o receber
testemunho dos homens”. Só a Palavra de Deus deve falar por conta de Deus.
“Minha doutrina não é minha, senão daquele que me enviou” (João 7:16). E, como
se aprovou a si mesma? Pelo fato de ser verdade! A verdade se fez conhecer àqueles
que a buscavam; o que “quer fazer a vontade de Deus, conhecerá se a doutrina é
de Deus, ou se eu falo por minha própria conta” (João 7:17). Em João 7 e 8, o
Senhor lhes está dizendo: «Eu digo a verdade. a tenho trazido de Deus; e se
esta é a verdade, e se procurais fazer a vontade de Deus, aprendereis a
reconhecê-la como a verdade.»
Deus não manteria as
pessoas na ignorância e na obscuridade se procuravam fazer Sua vontade.
Permitiria Deus que os corações sinceros fossem defraudados pelos muitos enganos
que haviam em redor? É claro que não! Ele faz conhecer Sua voz a todos os que
lhe buscam. Assim, o Senhor diz a Pilatos: “Todo aquele que é da verdade, ouve
a minha voz” (João 18:37). “Minhas ovelhas ouvem minha voz, e eu as conheço, e
me seguem”, e de novo: “Mas ao estranho não seguirão, senão fugirão dele,
porque não conhecem a voz dos estranhos” (João 10-27, 5).
A verdade é de uma natureza
tal que a desonramos se tratamos de convalidá-la para aqueles que são
verdadeiros, como se ela não fosse capaz de evidenciar a si mesma. Deus mesmo
inclusive é desonrado, como se ele não pudesse ser suficiente para as almas, ou
para o que ele mesmo tem dado. Não, o apóstolo fala de
“manifestação da verdade, recomendando-nos a toda consciência humana diante de
Deus” (2.ª Coríntios 4:2). O Senhor diz que o mundo está condenado porque “a
luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas que a luz, porque suas
obras eram más” (João 3:19). Não havia nenhuma falta de evidência. A luz estava
ali, e os homens reconheceram seu poder para sua própria condenação, quando
procuraram escapar dela.
Da mesma maneira, no dom
está a “manifestação do Espírito”, e é “dada a cada um para proveito” (1.ª
Coríntios 12:7). Pelo simples fato de que um homem o tenha, ele é responsável
de usá-lo; responsável ante Ele, quem não o tem dado em vão. A capacidade e o
título para «ministrar» estão no dom, porque eu sou responsável de ajudar e de
servir com o que tenho. Se os demais recebem ajuda, eles não necessitam
perguntar se tenho autorização para ajudá-los.
Este é o caráter sensível
do ministério, o serviço de amor conforme a capacidade que Deus dá; serviço
mútuo de uns aos outros e para todos, sem acepção ou a exclusão de uns a
outros. Cada dom é adicionado ao tesouro comum, e todos são feitos mais ricos.
A benção de Deus e a manifestação do Espírito são toda a autorização requerida.
Nem todos são mestres, mas se aplica exatamente o mesmo princípio. O
ensinamento é, entretanto, uma das muitas divisões do serviço para Deus,
serviço que é rendido por uns a outros, de acordo com a esfera de seu
ministério.
Não havia acaso nenhuma
classe ordenada (designada) na Igreja primitiva? Isso é uma coisa totalmente
distinta. Havia duas classes de oficiais que eram regularmente designados ou
ordenados. Os diáconos ou servidores tinham a seu cargo os fundos para os
pobres e outros propósitos, e eram eleitos, primeiro pelos santos para este
posto de confiança, e logo nomeados pelos apóstolos, já fosse diretamente ou
por aqueles autorizados pelos apóstolos para fazê-lo. Os anciãos foram uma
segunda classe — homens de idade, como o indica a palavra — que foram nomeados
nas assembléias locais unicamente pelos apóstolos ou seus delegados (Atos
14:23; Tito 1:5) como bispos ou supervisores para estarem atentos ao estado
espiritual da assembléia. Os anciãos eram o mesmo que os bispos, como deduzimos
claramente das palavras de Paulo aos anciãos de Éfeso (Atos 20:17,28), quando
ele lhes exorta dizendo: “Portanto, olhai por vós e por todo o rebanho em que o
Espírito Santo os tem posto por bispos.” Aqui os tradutores da versão
Reina-Valera tem deixado sem traduzir a palavra grega «bispo» que significa
«supervisor», e o mesmo podemos observar em Tito 1:5, 7: “Por esta causa te
deixei em Creta, para que... e estabelecesses anciãos em cada cidade, assim
como eu te mandei... porque é necessário que o bispo (supervisor) seja
irrepreensível...”.
O trabalho de um ancião era
vigiar ou supervisar, e mesmo quando ser “apto para ensinar” (1.ª Timoteo 3:2)
era uma qualidade muito requerida em vista de que os erros eram já rampantes, o
fato de ensinar certamente não era algo limitado àqueles que eram “maridos de
uma só mulher, que tenha a seus filhos em sujeição com toda honestidade”, etc.
(Tito 1:6-9; 1.ª Timóteo 3). Esta foi uma prova necessária para um que seria
ancião (ou bispo), “pois o que não sabe governar sua própria casa, como cuidará
da igreja de Deus?” (1.ª Timóteo 3:1-7).
Qualquer que tenham sido os
dons que tiveram os anciãos, eles os utilizavam da mesma maneira que faziam
todos. O apóstolo Paulo ordena o seguinte: “Os anciãos que governam bem, sejam
tidos por dignos de duplo honorários, especialmente os que trabalham em pregar
e ensinar” (1.ª Timóteo 5:17). Mas se desprende claramente que eles podiam
governar bem sem ocupar-se em trabalhar na Palavra e no ensino.
O significado de sua
ordenação ou nomeação era só este: aqui se tratava de uma questão de
autoridade, não de dom. Foi uma questão de título para examinar com freqüência
assuntos difíceis e delicados entre pessoas que não estavam dispostas a
submeterem-se à Palavra de Deus. A ministração do «dom», não obstante, era uma
questão totalmente diferente.
MINISTÉRIO VS. CLERICALISMO
Nosso penoso dever, agora,
é contrastar esta doutrina da Escritura com os sistemas nos quais uma classe
definida está consagrada formalmente a coisas espirituais, enquanto os laicos
estão excluídos de dita ocupação. Este é o verdadeiro nicolaísmo: a sujeição do
povo.
O ministério da Palavra de
Deus é completamente legítimo e nele estão aqueles que possuem dons e
responsabilidades especiais (mas não exclusivamente) para ministrá-lo. Mas o
«sacerdócio» é suficientemente distinto do «ministério» para ser reconhecido
facilmente onde quer que seja reclamado ou exista. Os protestantes em geral
negam que todo poder sacerdotal esta em seus ministros. Não tenho nenhum desejo
de disputar sua honestidade nesta negação. Eles querem dizer que seus ministros
não tem nenhum poder autoritativo de absolvição, e que eles não fazem da mesa
do Senhor um altar no que se renove, dia após dia (como na missa católica
romana), a perfeição do oferecimento único e suficiente de Cristo, negada por
inumeráveis repetições. Eles tem razão com respeito a ambas as coisas, mas esta
não é a história completa. Se analisarmos mais profundamente, encontraremos que
existe um caráter sacerdotal de muitas outras maneiras.
Podemos distinguir
sacerdócio e ministério como segue: o ministério é para os homens, enquanto que
o sacerdócio é para Deus. O que ministra traz a mensagem de Deus ao povo,
falando, da parte de Deus, a eles. O sacerdote se dirige a Deus de parte do
povo, falando no sentido inverso: de parte do povo, a Deus.
O louvor e as ações de
graças são sacrifícios espirituais. Eles são parte de nossas oferendas como
sacerdotes. Agora, ponha uma classe especial em um lugar onde eles só, de forma
regular e oficial, atuem dando louvores e ações de graças, e virão a ser um
sacerdócio intermediário, mediadores entre Deus e aqueles que não estão tão
perto Dele.
A Ceia do Senhor é a mais
completa e proeminente expressão pública da adoração e ação de graças cristã;
mas, que ministro protestante ou pastor denominacional não o considera como seu
direito e dever oficiais de administrá-la? A maioria dos «laicos» se abstém de
administrá-la. Este é um dos terríveis males do sistema, pelo qual as massas
cristãs são deste modo secularizadas (feitas mundanas). Ocupadas com coisas
mundanas, pensam que não podem esperar ser espiritualmente como os clérigos.
Deste modo, as massas são exoneradas das ocupações espirituais, para as quais
crêem não reunir as mesmas condições que o clero.
Mas isto vai muito mais
além. “Porque os lábios do sacerdote tem de guardar a sabedoria” (Malaquias
2:7). Mas como pode o laico (que tem chegado a ser tal por haver abandonado seu
sacerdócio voluntariamente) ter a sabedoria pertencente a uma classe
sacerdotal? A falta de espiritualidade à qual se tem desprezado a si mesmos não
lhes permite conhecer as coisas espirituais. Assim, só a classe ocupada nas
coisas espirituais vem a ser intérprete autorizada da Palavra de Deus. Deste
modo, o clero vem a ser os olhos, ouvidos e boca espirituais dos laicos.
De qualquer maneira, esta
organização convém à maioria das pessoas. O «clericalismo» não tem começado
simplesmente porque uma classe de homens que quiseram dirigir assumiram o lugar
de liderança. Esta miserável e anti-bíblica distinção entre clero e laicos
nunca poderia ter ocorrido de maneira tão rápida e universal se não estivesse
tão bem adaptada ao gosto daqueles a quem substituiu e degradou. No
cristianismo, como em Israel, a profecia têm sido cumprida, “os profetas
profetizam falsamente, e os sacerdotes dominam de mãos dadas com eles; e é o
que deseja o meu povo.” (Jeremias 5:31). Ao sobrevir uma decadência espiritual,
um que esta voltando ao mundo troca de boa vontade, como Esaú, sua
primogenitura espiritual por uma mistura da sopa do mundo. Concede com gratidão
sua necessidade de cuidar das coisas espirituais àqueles que aceitem esta
responsabilidade.
Uma vez que a Igreja perdeu
seu primeiro amor e o mundo começou a introduzir-se através das portas
pobremente protegidas, chegou a ser mais difícil para os cristãos tomar o
bendito e maravilhoso lugar que lhes pertencia. Cada passo descendente só fazia
mais fácil os passos subseqüentes, até que, em menos de 300 anos desde o começo
da Igreja, um sacerdócio judaico e uma religião ritualista foram praticados em
quase todas as partes. Só os nomes das coisas preciosas do cristianismo foram
deixados. A realidade dos privilégios especiais e cada cristão individual havia
desaparecido.
ORDENAÇÃO
Observemos com maior
detalhe um traço característico desta clerezia ou clericalismo. Notamos a
confusão entre o ministério e o sacerdócio; a atribuição de um título oficial
não escriturário, para as coisas espirituais, para administrar a Ceia do Senhor
e para batizar, etc. Agora tratarei sobre ênfase posta por este perverso
sistema sobre a ordenação (isto é, nomeação ou reconhecimento oficial).
Quero que vejas o que
significa ordenação. Primeiro, se consultamos o Novo Testamento, não
encontraremos nada acerca de uma ordem para ensinar ou pregar. Encontraremos as
pessoas que fazem livremente, usando um dom que tenham. A Igreja inteira foi
dispersa fora de Jerusalém (exceto os apóstolos) e estas pessoas foram por
todas as partes pregando a Palavra. As perseguições não as ordenaram. Não há
rastro de outra coisa. Timóteo recebeu um dom de profecia pela imposição das
mãos de Paulo, em companhia dos anciãos (2.ª Timóteo 1:6; 1.ª Timóteo 4:14);
mas aquela era a comunicação de um dom, não uma autorização para usá-lo! A
Timóteo, então, se lhe ordena que comunique seu próprio conhecimento a homens
de fé, que foram capazes também de ensinar a outros (2.ª Timóteo 2:2), mas não
há nenhuma palavra acerca de ordená-los. O caso de Paulo e Barnabé em Antioquia
(Atos 13:1-4) fracassa como sustento do propósito com que alguns o querem usar,
porque (da maneira como se pretende usar) profetas e mestres estariam obrigados
a ordenar ao apóstolo Paulo mesmo, que recusa totalmente ser um apóstolo “dos
homens ou por homem” (Gálatas 1:1). Ao contrário o Espírito Santo diz:
“Apartai-me a Barnabé e a Saulo para a obra a que (Eu) os tenho chamado” (Atos
13:2). Se trata aqui simplesmente de uma missão especial que eles cumpriram
(Atos 14:26).
O que significa ordenação
nos círculos religiosos da atualidade? Pode você estar seguro de que significa
muito; do contrario, os homens não contenderiam com tanto zelo por ele. Há duas
formas de ordenação. Na forma mais extrema — como no caso dos católicos romanos
e os ritualistas — à ordenação se o confere a atribuição de conceder tanto
autoridade como poder espiritual. Os líderes da igreja se adotam, com todo o
poder dos apóstolos, a faculdade de subministrar o Espírito Santo mediante a
imposição de suas mãos. Deste modo, as massas do povo de Deus são descartadas
do sacerdócio que Ele mesmo lhes tem outorgado, e uma classe especial é
colocada em seu lugar para intermediar por eles de uma maneira que anula o
fruto da obra de Cristo e os ata à «igreja» como o único meio de achar graça.
Aqueles que aceitam uma
forma mais moderada de ordenação, recusam reta e consistentemente essas
pretensões anti-cristãs. Eles não pretendem conferir nenhum dom na ordenação,
senão que só «reconhecem» o dom que Deus têm dado. Porém este «reconhecimento»
é considerado necessário antes de que a pessoa possa batizar ou administrar a
ceia do Senhor, coisas que não requerem nenhum dom especial em absoluto! Então,
enquanto ao ministério, o dom de Deus estaria obrigado a requerer a aprovação
humana, e é «reconhecido» em nome de Seu povo por aqueles a quem se considera
que tem um «discernimento» que os cristãos laicos não tem.
Cegos ou não, estes homens
ordenados — o clero — vêm a ser os “guias dos cegos”, à vez que seus próprios
corações são tirados do lugar de responsabilidade direta ante Deus e feitos
indevidamente responsáveis ante o homem. Uma consciência artificial é feita
para eles de parte daqueles que os ordenaram, e lhes são constantemente
impostas condições as quais se tem que ajustar a fim de obter o reconhecimento
requerido. Inclusive estes pastores ou ministros freqüentemente estão sob o
controle de seus «ordenadores» no que respeita a sua senda de serviço.
Em princípio, tudo isto é
infidelidade a Deus, porque se Deus me tem dado um dom a fim de que o use para
Ele, eu seria certamente infiel se comparecer a algum homem ou a um grupo de
homens com o fim de solicitar sua permissão para usá-lo. O próprio dom acarreta
a responsabilidade de usá-lo, como o temos visto. Se eles dizem que as pessoas
podem cometer erros, eu estou de acordo, mas quem tem de assumir minha
responsabilidade se estou equivocado? Além do mais, os erros cometidos por um
«corpo ordenante» (ou «presbitério») são muito mais sérios que os de um
indivíduo que meramente marcha sem haver sido enviado pelos homens, porque os
erros do corpo ordenante são declarados sagrados e se prolongam no tempo pela
ordenação que conferiu. Se a pessoa «ordenada» simplesmente se sustentara por
seus próprios méritos, encontraria rapidamente seu verdadeiro nível; mas o
corpo ordenante tem investido sobre ele um caráter que deve ser mantido.
Equivocação de por meio ou não, ele é agora nada menos que um novo membro do
corpo clerical, um ministro, mesmo quando não tenha realmente nada que
ministrar. Ele deve ser mantido — deve ter sua «igreja» — por mais que esta se
encontre em uma localidade pouco ilustre, onde as pessoas — tão amadas por Deus
como qualquer — é posta sob seu cuidado e deve ficar sem se alimentar se ele
não for capaz de alimentá-las.
Não me acuse de sarcástico.
O anterior é um fiel retrato do sistema do qual estou falando, sistema que
envolve ao corpo de Cristo com vendas que impedem a livre circulação do sangue
vivificante do ministério, que deveria estar fluindo de forma irrestrita
através de todo o corpo. Aqueles que ordenam na atualidade devem provar que são
ou apóstolos ou homens designados pelos apóstolos porque, segundo as
Escrituras, nenhum outro tinha autoridade para ordenar (Atos 14:23; Tito 1:5).
Aliás, devem provar que o «ancião» segundo as Escrituras pode não ser ancião de
todo, senão um jovem, uma pessoa solteira, apenas saída de sua adolescência e
que fora evangelista, pastor e mestre — todos dons de Deus envoltos em uma só
pessoa —. Este é o ministro segundo o sistema: o tudo em todos para 50 ou 500
almas confiadas a ele como seu rebanho, no qual nenhum outro tem o direito de
interferir. Seguramente a marca de «nicolaísmo», está posta sobre um sistema
como este!
Mesmo quando o ministro
esteja espiritualmente dotado (e muitos estão, como outros muitos não estão), é
improvável que tenha todos os dons espirituais. Suponha-se que seja um
verdadeiro evangelista e que as almas se salvem; ele pode não ser um mestre, e
ver-se assim incapacitado para edificá-las na verdade. Ou talvez tenha o
verdadeiro dom de Deus de mestre, mas é enviado a um lugar onde há tão somente
uns poucos cristãos e muitos de sua congregação são não convertidos. Não há
conversões, mas sua presença ali, a causa do sistema sob o qual está trabalhando,
mantém afastado (em diversos graus) ao evangelista que se necessitaria ali. Agradeçamos a Deus que Ele sempre esteja desbaratando estes
sistemas, e que as necessidades possam ser supridas de algum modo irregular. Entretanto, esta provisão humana não é conforme o plano de Deus e por ele
divide ao invés de unir. O sistema é o responsável de tudo isto. O ministério
exclusivo de um só homem, ou de um número específico de homens em uma
congregação, não tem Escritura que o sustente. A ordenação é o esforço para
limitar todo ministério a certa classe e faz descansar a este na autorização
humana e não no dom divino. E assim se nega aos demais membros do corpo — o
rebanho de Cristo — a capacidade aprovisionada por Deus para ouvir Sua voz e
logo comunicá-la. O resultado é que se dá ao homem a atenção que deveria ser
dada à Palavra que ele traz. A pergunta prevalecente é: Está autorizado?
Relativo à verdade do que fala, com freqüência é secundaria se ele está
ordenado; ou talvez, diria eu, sua ortodoxia (sua retidão doutrinal) está
estabelecida já de antemão para eles pelo fato de ser ordenado.
O apóstolo Paulo não fora
autorizado para ministrar conforme este plano. Houve apóstolos antes dele, mas
ele não subiu a eles nem recebeu nada deles. Se houvesse uma «sucessão», ele a
cortou. Paulo fez o que fez, de propósito, para mostrar que seu evangelho não
era segundo os homens, nem derivado deles (Gálatas 1:1) e que não descansava
sobre a autoridade humana. Se ele mesmo ou um anjo do céu (cuja autoridade
pareceria concludente), anunciasse um evangelho diferente do que havia pregado,
a sentença solene de Paulo é: “seja anátema” (Gálatas 1:8-9).
Autoridade, então, não é
nada, a menos que seja autoridade da Palavra de Deus. Esta é a prova: É isto
conforme às Escrituras? “Acaso pode um cego guiar a outro cego? Não cairão
ambos no buraco?” (Lucas 6:39). Dizer: «Eu não pude conhecer: confiei no
outro», não o salvará do poço (o inferno para os não conversos, a pobreza
espiritual e a perda da comunhão para os salvos), independentemente de quanta
«autoridade» pretendeu ter o ministro que lhe guiou ao erro.
Mas, como pode pretender o
não espiritual e não instruído «laico» ter um conhecimento igual ao do educado
e acreditado ministro, dedicado às coisas espirituais? Em geral, não pode. Ao
invés de segurar por si e para si a Palavra de Deus, usando o poder do Espírito
Santo que mora Nele para aprender as coisas espirituais (João 14:26), ele se
submete àquele que, segundo supõe, deve saber mais e melhor. Assim pois, na
prática, o ensinamento do ministro ou pastor substitui principalmente a
autoridade da Palavra. Entretanto, ele mesmo não tem certeza em quanto à
verdade ministrada. O laico não pode ocultar-se a si mesmo o fato de que os
ministros não estejam de acordo entre si por mais doutos, bons e acreditados
que sejam.
Mas aqui o diabo intervém e
sugere à pessoa incauta que a confusão é o resultado da imprecisão das
Escrituras, quando em realidade é o resultado de fazer caso omisso das
Escrituras.
Opinião, não fé, há em
todas as partes. Você tem direito a sua opinião, mas deve conceder a outros o
direito a ter a própria. Você pode dizer «eu creio» enquanto não quer dizer «eu
sei». Reclamar «conhecimento» seria reclamar que você é mais sábio e melhor que
as gerações precedentes, as que creram de forma diferente.
A infidelidade
(incredulidade) logra prosperar desta maneira, e Satanás se regozija quando
consegue que os pensamentos de muitos vibrantes comentaristas substituem a
simples e segura voz divina. O que você necessita é a “espada do Espírito, que
é a Palavra de Deus” (Efésios 6:17). Crês tu que «assim disse João Calvino» ou
«Martinho Lutero» ou qualquer outro homem, impactará tanto a Satanás como:
“assim disse o Senhor”? Quem pode negar que tais pensamentos e práticas, estão
em todas as partes e não restringidas unicamente aos católicos romanos e
ritualistas? A tendência constante é a de desviar-se do Deus vivente, mesmo
quando Ele está tão próximo dos seus hoje em dia como nunca antes na história
da Igreja. Ele é, inclusive, tão capaz para instruir como sempre, e todavia
está disposto a cumprir a palavra: “O que quer fazer a vontade de Deus,
conhecerá se a doutrina é de Deus” (João 7:17). Os «olhos» da fé são os olhos
do coração (do afeto por Deus), não olhos da cabeça. Deus tem ocultado dos
sábios e entendidos o que revela às criaturas. A escola de Deus é mais efetiva
que todos os seminários juntos, e nessa divina escola, laicos e clérigos podem
ser iguais: “o espiritual julga (discerne) todas as coisas (1.ª Coríntios
2:15), pois tudo depende da condição espiritual individual. Não há substituto
para a espiritualidade. O homem não pode gerar espiritualidade em outra pessoa
mediante a ordenação nem mediante nenhum outro meio. Ordenação, em sua forma
mais moderada, é o esforço do homem para realizar a manifestação do Espírito
Santo. Mas se aqueles que ordenam cometem um erro (o são eles mesmos não
espirituais e, por ele, incapazes de julgar) e seu «ministro» não tem nada que
ver com a obra de Deus, eles simplesmente provêem guias cegos para os cegos.
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