Modalidade e Sodalidade

Sobre Modalidade e Sodalidade


No Brasil e em grande parte do mundo cristão, quase não se questiona a estrutura da igreja local, representada principalmente pelas congregações denominacionais. Para nós, igreja é sinônimo de instituição. Isso faz com que as estruturas missionárias não ligadas a uma denominação específica ou interdenominacionais sejam vistas como paraeclesiásticas –próximas da igreja, mas não parte dela. Daí conclui-se: se as congregações fossem “mais missionárias”, não precisaríamos das agências de missões.

No entanto, estudiosos que dedicaram-se à análise das formas como a igreja se apresenta ao longo de sua história identificaram duas estruturas diferentes e complementares; ambas compondo igualmente o corpo de Cristo. No Novo Testamento, vemos as igrejas locais, congregacionais –a modalidade– e os grupos missionários, especialmente o de Paulo – a sodalidade.

De acordo com o antropólogo e missiólogo Dr. Ralph D. Winter, as modalidades são “comunidades estruturadas nas quais não há distinção de sexo ou idade”, ou seja, fazem parte dela igualmente “velho e jovem, homem e mulher”; “é um organismo biologicamente perpetuável”. Entre as funções da modalidade estão: congregar, cuidar, nutrir os crentes locais e atuar no contexto social à sua volta. Por sua vez, as sodalidades são estruturas organizadas em torno de alvos específicos e de um senso comum de missão e visão. Exigem de seus membros uma segunda decisão, baseada em um chamado e vocação, e também o compromisso com um estilo de vida alternativo visando o alcance dos alvos, vivência da missão e implementação da visão. 

Entretanto, o nível de compromisso com o relacionamento com Deus e com incluir o próximo nesse relacionamento deve ser o mesmo em ambas as estruturas.

Dentro destas características, temos as modalidades sendo representadas ao longo da história pelas sinagogas cristãs dos primeiros séculos do Cristianismo, pelas paróquias e dioceses da igreja romana e, mais recentemente, pelas congregações denominacionais evangélicas. As sodalidades, por sua vez, são representadas pelos grupos missionários como o de Paulo, pelas ordens religiosas católicas, e pelas juntas e agências missionárias da Era Moderna.

Uma importante característica da sodalidade é sua autonomia. Observando a relação do grupo missionário de Paulo com a igreja de Antioquia, a qual o liberou para o trabalho que o Espírito Santo lhe havia enviado a fazer [Atos 13:1-4], podemos observar que Paulo era autônomo em relação a ela na tomada de suas decisões, mas totalmente submisso ao Espírito [Atos 16:6-10]. No entanto, não houve um rompimento de Paulo com esta igreja; pelo contrário, apesar de não ser governado por ela, Paulo reportou-se, prestou contas de seu ministério à igreja em Antioquia e a via como um lugar para onde podia retornar de suas viagens [Atos 14:26-28].

Há de se diferenciar aqui autonomia de independência. A sodalidade de Paulo era autônoma em relação à igreja que o liberou, ou seja, possuía capacidade de administrar-se livremente de acordo com as necessidades da missão a ser cumprida, mas não era independente no sentido de ausência de relações. Na verdade, este relacionamento entre modalidade e sodalidade é “tão fundamental” que dele provém grande parte dos escritos do Novo Testamento –as cartas enviadas de membros das sodalidades às igrejas locais. Vemos também que os membros da sodalidade são comumente provenientes da modalidade.

Enfim, há uma relação de interdependência entre as estruturas e ambas são legítimas na composição do corpo de Cristo. Funções diferentes, mas igual importância. Quando entendermos e vivermos isto, seremos realmente eficientes no cumprimento da grande comissão, pois assim refletiremos a união que Jesus mencionou como a característica pela qual o mundo reconheceria que Deus o enviou [João 17:21]. Duas estruturas, mas um só corpo.

Identificação, conceito e justiça

O zelo dos reformadores protestantes em retomar o Cristianismo em sua essência e criar uma identidade cristã fora do Catolicismo atropelou tradições cristãs que remetem historicamente à herança abraâmica. Com a privatização da Igreja no século 18, o Cristianismo moderno se distanciou ainda mais dessas heranças. O cristão se tornou um indivíduo afastado do meio, inerte em atividades elevadas ao estatuto de sagradas.

No final dos anos 1960, os frades dominicanos, envolvidos na luta contra a ditadura militar no Brasil, foram expressão da mudança de rumos da organização popular na sociedade brasileira. O Brasil vivia dois conflitos: a economia em mãos estrangeiras e o Estado em poder de autocratas militares. Partindo de uma nova maneira de ler a Bíblia e da preocupação com o que significaria ser cristão naquela conjuntura, abandonando a antiga dualidade entre fé e vida, a ordem dos dominicanos se tornou o embrião dos movimentos populares.

Durante o golpe militar, esses movimentos foram vistos como laboratórios de idéias comunistas e seus participantes perseguidos pelo regime autoritário; no entanto, a população encontrou entre eles a sua voz. “Quando dou pão aos pobres, chamam-me de santo, quando pergunto pelas causas da pobreza, me chamam de comunista”, diz Dom Hélder Câmara.

Se com a supressão dos direitos constitucionais, perseguição política, prisão e tortura aos opositores, censura aos meios de comunicação, as pessoas imergiram em um universo despolitizado, a ordem dos frades fazia o caminho inverso. Mobilizaram-se para promover novos espaços públicos, amparar presos políticos e convergir grupos que, por ideologia, se posicionavam em resistência às injustiças contra o povo.

A desigualdade social, que ao longo da história é denunciada por diversos grupos, é costumeiramente fruto de mudanças nas ênfases econômicas e no modo de produção. Em Israel, por volta do século 8 a.C., a economia da nação, a exemplo do modo fenício, investiu no incremento do comércio em detrimento da agricultura; o que resultou, como afirma Toynbee, em “uma alteração quase revolucionária na distribuição da riqueza, com desvantagem para a maioria pobre da população.”

Nesse período reinava sobre Israel Jeroboão II. Seu reinado foi marcado por um período de expansão territorial e prosperidade. Mesmo com o cisma ocorrido anteriormente, na morte de Salomão –que dividiu a nação em dois reinos– Israel vivenciou no século 8 a.C. um período de estabilidade política e prosperidade econômica com a tomada da Síria pela Assíria, o que possibilitou a expansão territorial por meio da retomada das terras ocupadas pelo reino sírio. Todavia, o bem-estar econômico e político ocultava uma decomposição social. O contraste entre ricos e pobres denunciava injustiças e degradação moral.

Esses fatos são evidenciados nos escritos do profeta Amós, presentes na composição bíblica. Amós, contemporâneo de Jeroboão II, relata a sociedade da qual faz parte. A fluência e a construção de seu texto revela um homem em contato direto com as questões do seu tempo em matéria de sociedade, política e economia.

A palavra profeta chega a nós através do vocábulo hebraico nabi, ou “aquele que proclama”; um conceito diferente do utilizado hoje, que relaciona a palavra à predição. Dessa forma, o trabalho de Amós era o de anunciar a Israel o castigo que viria como conseqüência de suas práticas de injustiça. Fazendo-se uma voz contra injustiça, Amós denunciava as práticas sociais que iam contra o conceito de justiça presente na religião e na cultura hebraica.

A essência da ação de Amós se concentra na sua compreensão da idéia de Deus. Para ele, todo entendimento de Deus estava baseado no pressuposto de justiça. A moralidade e a justiça eram centrais em Deus. Dessa forma, ele apresenta em seu discurso a implantação da justiça como única via de remissão, colocando o homem como agente direto de transformação e responsável pelo destino da sociedade. Amós posiciona o homem como um agente social.

O caráter social da atuação dos profetas em Israel está relacionado à influência que eles representavam no campo das idéias. Sua maior responsabilidade não estava em estruturar um plano de reforma social propriamente dito, ou uma mobilização social em termos revolucionários, mas em produzir conceitos a serem lançados sobre a sociedade, que modificariam tanto o pensamento como a prática social. O filósofo José Luís Sicre, em sua obra Profetismo em Israel, aponta o caráter social da atuação dos profetas: “Um dos aspectos mais célebres e importantes da mensagem profética é constituído pela sua denúncia dos problemas sociais e pelo seu esforço em prol de uma sociedade mais justa.”

Na modernidade, com o apogeu do iluminismo, as sociedades ocidentais se empenharam em dissociar a religião das questões sociais humanas; retomando o conceito grego que diferenciava os espectros humanos entre mythos e logos, em que o mythos englobaria exclusivamente as questões intemporais, religiosas e de transcendência.

Desde então, a religião tem sido compreendida como responsável apenas pela espiritualidade do homem, não comunicando em nada com os enfrentamentos da sociedade em geral. Parecendo abusiva e fora de jurisdição qualquer crítica social ou atuação relevante, as sodalidades hoje enfrentam o dilema de responder a questões sociais em um mundo que não as compreende.

Na prática, as sodalidades religiosas buscam responder a três necessidades: identificação, conceito e justiça social. Sociologicamente, representam a capacidade humana de construir grupos com um propósito específico. Em Roma, por volta do século 7 a.C., o termo sodalitas englobava dois agrupamentos sociais: um político, outro religioso. As sodalidades políticas reuniam bens e habilidades de pessoas abastadas para se promover, enquanto as religiosas convergiam recursos e talentos para se ocupar das questões que envolviam a complexidade humana, seja em aspectos de moral, transcendência ou vivência.

Com a decadência do Império Romano, o conceito de sodalidade política se esvaneceu, permanecendo exclusivamente o de caráter religioso. Hoje, as associações que ousam se afastar do conceito iluminista sobre a prática religiosa para convergir habilidade, conhecimento e know-how estão fadadas a serem desacreditadas em sua finalidade. Na pós-modernidade esta prática parece ser legítima apenas às instituições do mercado. 

Fonte: Abrangente reflexão produzida por missionários de JOCUM sobre o conceito de Modalidade e Sodalidade. 

Nenhum comentário: